Por Anderson Araújo
A palavra saiu de casa chutando lata, sem nenhum trocado no bolso.
Pensava no rango, a palavra. A fome doía, o cinto apertava.
Nada no bolso ou nas mãos. Sem lenço, sem documento.
E com mais dois ou três chutes na lata, pensou-se barata.
Rima difusa, abstrata.
Como não era dia doce de poesia, seguiu pensando à dura prosa.
Viu-se barata. Horrorosa.
Horrorosamente, barata.
Não das que sobrevivem à hecatombe nuclear e fazem as mulheres subir pelas paredes, pelas cadeiras, longe do chão.
Era barata pelo preço, quase nada, coitada.
Parou defronte da vitrine do grande magazine e se olhou: rota.
Para não confundir com o caminho, preferiu um advérbio e um adjetivo para melhor qualificação: mal ajambrada.
Pelo menos, a sonoridade era mais bonita.
Ajeitou a gola, suspendeu a calça, passou a mão nos cabelos.
Nada.
Continuava chinfrim, sem valor de mercado.
Deu um duro danado para se enquadrar num estrangeirismo.
Quem sabe assim parava num letreiro de salão de beleza, num neon de casa noturna e até na fachada de um condomínio chique, se tirasse a sorte grande.
Realinhou aqui, misturou ali, pintou a juba de loiro, deu uma bicuda numa vogal e pronto.
Mas a mexida não funcionou muito bem, o tiro saiu pela culatra e ela quase cai em desuso e perde o benefício sagrado do dicionário, um dos últimos recursos dos vocábulos à beira do sumiço fatal.
Cabisbaixa, entrou no shopping para espairecer, sem se dar conta de que ali o valor venal de tudo estava mais ainda medido, mais na cara de todo mundo.
A luz amena, o ar refrigerado, as moças bonitas, porém, deram uma aliviada na tensão.
Viu nas lojas os primos números, estrelas do lugar. Observou os letreiros enormes, bem empregados, chamando atenção dos fregueses. Irmãos que deram certo.
Passou por livrarias e encontrou suas semelhantes bem sucedidas, morando em livros bons, muito requisitadas por estudantes, doutores, rapazes e moças delicadas com óculos de aro grosso.
Valiam uma nota, passeavam por aí embaixo de sovacos perfumados, descansavam em estantes de design moderno com direito a anti-mofo.
Além da inveja, veio o estalo: sozinha não conseguiria nada.
Era preciso se unir. Criar um grupo. Uma associação. Um sindicato. Um partido. Um exército caso fosse preciso.
Decidida, saiu à rua, postou-se em tamborete na maior praça da cidade e iniciou um discurso histórico.
Logo, logo, outras palavras de mesmo naipe pararam para ouvir a defesa eloquente da união de todas as palavras que se sentiam menosprezadas e estavam em situação precária.
Palavras baratas, uni-vos.
Uma multidão vernacular de valores semânticos diversos embarcou na ideia e sem demora deram as mãos para formar frases, períodos, parágrafos e, mais adiante, dissertações, artigos, crônicas, contos, o escambau.
As mais audazes enveredaram para a poesia marginal só para chocar. Outras para a concreta para não serem entendidas nem incomodadas.
As mais afoitas correram para a novela.
As radicais se abrigaram em romances massudos, enormes, enfadonhos.
As elitistas preferiram as enciclopédias, os textos científicos e os manuais de vinho.
Fez-se a revolução, como estava escrito nas estrelas.
A palavra barata, a primeira e idealizadora de todo o rebuliço, foi declarada heroína nacional, condecorada com medalhas e festeja pela imprensa progressista e os badalados da cidade.
Viveu tempos de glória. Acabou o perrengue. Nem sinal da dureza de outrora.
Hoje, cansada de guerra, dentro de um e-book de autoajuda de R$ 2,90, ela olha as ruínas do seu apogeu, entre orgulhosa e incrédula e, embora totalmente impossibilitada pelo asilo tecnológico que lhe coube, ainda sonha.
Não mais com a luta contra opressão das palavras da elite.
Almeja, de coração, descansar num velho sebo empoeirado e jogar conversa fora com o pessoal das antigas, aqueles que ainda se cumprimentam cordiais quando se cruzam por aí e ainda escrevem farmácia com Ph.
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