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quinta-feira, outubro 03, 2013

Rodolfo, ex-Raimundos (saudades de você)

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Por Ricardo Alexandre

Certa vez, participei de um programa da PlayTV no qual eu passei pela impossível tarefa de escolher os cinco momentos mais importantes da história rock brasileiro. Curioso lembrar que, entre três marcos inaugurais (a estreia do programa Jovem Guarda, o primeiro Rock in Rio, o primeiro disco do Sepultura na parada inglesa), eu acabei incluindo dois momentos de ruptura: a prisão de Gil e Caetano, a partir da qual eu falei sobre a Tropicália e os descaminhos do rock nacional nos anos 1970, e a saída de Rodolfo Abrantes dos Raimundos.

Rodolfo deu a notícia à banda quando os quatro se reuniram na sede da gravadora WEA para uma série de entrevistas de divulgação do DVD MTV Ao Vivo. Reza a lenda que por pouco a discussão não virou física. Os Raimundos estavam em seu auge de popularidade e faturamento e girando em velocidade máxima: quatro a cinco shows por semana, fora eventos de divulgação, apresentações em cidades jamais visitadas (Manaus, Rio Branco, Porto Velho etc), quatro hits de verdade rodando ao mesmo tempo nas rádios (“Me lambe”, “Aquela”, “Mulher de fases” e “A mais pedida”) e uma inacreditável versão de “20 e poucos anos”, velho soul de Fábio Jr, tocando diariamente no reality-show Vida Real da MTV e nas rádios jovens.

Lembro perfeitamente do Video Music Brasil do ano 2000, aberto pelos Raimundos tocando, sem anúncio, e em velocidade supersônica, “20 e poucos anos”. Foram dois minutos de uma potência sonora e uma sentido histórico que me deixaram grudado na poltrona do Credicard Hall pensando que, pela primeira vez, tínhamos uma banda de R-O-C-K, rock mesmo, não somente tão afiada e competente quanto as melhores bandas estrangeiras, mas com uma carga de identidade cultural brasileira (era Fábio Jr., cara, o Jorge Tadeu!) como nenhuma banda de Manchester ou de Boston jamais poderia ter.

Dez meses depois, Rodolfo comunicou que estava deixando o grupo. E, no dia seguinte ao anúncio do cantor, a banda anunciou que estava se separando.

Num país em que a Blitz continua em turnê permanente e o RPM prepara-se para lançar mais um álbum ao vivo, achei aquilo um marco: uma banda anunciar seu fim. Fiz pessoalmente o texto para a Usina do Som, entrevistando o baterista Fred: “Raimundos somos nós quatro. Quando um de nós sai, não faz sentido continuar a trabalhar como Raimundos”. Eu vibrava com tamanha integridade. Rodolfo estava incomunicável em uma praia em Santa Catarina e as primeiras notícias saíram sem depoimentos dele.Naqueles tempos era um tanto complicado acompanhar tudo o que se sucedia envolvendo os Raimundos. Era música nova no rádio (uma piada gravada numa passagem de som chamada “Reggae do Manêro” e enviada às rádios com enorme sucesso); de repente era o Rodolfo na capa da Capricho dizendo que havia se convertido ao cristianismo evangélico; de repente era ele saindo da banda; de repente, era a banda acabando. Mas de repente, era a banda voltando como trio; Rodolfo assinando contrato com a WEA e começando um projeto de new-metal com letras “com mensagem” chamado Rodox e os Raimundos “concorrendo” com uma velha música jamais gravada chamada “Sanidade”, teoricamente endereçada ao ex-vocalista. Ufa.

Só fui reencontrar Rodolfo pessoalmente quando preparava a primeira edição da revista Frente e agendamos uma entrevista. Me impressionou o quanto ele falava, e como falava com coerência, articulação e inteligência. Nem imaginava que por trás do pothead de antes houvesse alguém assim. Quando desliguei o gravador, a conversa ficou mais pessoal. Agradeci, com sinceridade, por haver um artista no Brasil representando tão bem a minha própria fé. Diferentemente de outros astros convertidos, Rodolfo não falava sobre o que não entendia, buscava entender cada vez mais, não transformava sua conversão em moeda artística e, especialmente, era caso raro de alguém que realmente havia aberto mão de algo em nome do que acreditava. Algo verdadeiramente grande, tentador e influente, e não o emprego de backing vocalist no Jota Quest.

Eu tenho uma teoria roqueiro-teológica (espero que não seja heresia), que compartilhei na ocasião com Rodolfo. Remonta ao fato do rock’n’roll ter surgido nos Estados Unidos pregando a mistura racial e cultural bem no chamado “bible belt” americano ultraracista, ultraconservador e ultra-religioso. Era um grito contra a acomodação da própria igreja. Há o lado hedonista e autodestrutivo do rock, eu sei, mas há o lado idealista, provocador e transformador do “poder jovem” que nos conduziu pelo movimento hippie, pela contracultura dos anos 60, pelos Beatles, pelos protestos contra a guerra do Vietnã e tal.

Só que o rock é auto-sabotador em sua essência, porque luta tanto contra o sistema que, um belo dia, ele próprio se torne o sistema. Nesse ponto, ou sua banda acaba como os Beatles, ou abraça o cinismo corporativo como os Rolling Stones ou você se destrói pessoalmente, como Kurt Cobain. O teólogo John Stott, que foi capelão da família real britânica bem na época da “Swinging London”, dizia que o cristianismo é a contracultura definitiva – porque mais do que lutar contra os impulsos egoístas da sociedade, ele vai lutar contra os impulsos egoístas das pessoas, de todos nós. Minha teoria é a de que o cristianismo é o rock’n’roll que o rock’n’roll nunca vai conseguir ser. É a Sociedade Alternativa que Raul nunca conseguiu implementar de fato. É a contracultura que nunca será engolida pela cultura. Rodolfo parecia animado com o papo.

O ex-raimundo confidenciou o quanto corroía sua alma cada playback em programa dominical, cada show em rádio transformado em jabaculê, cada execução de “Reggae do manero”, cada vez em que ele abria o microfone para cantar sobre coisas em que não acreditava mais, apenas pelo cachê. Ele havia chegado no ponto de auto-sabotagem do rock, aquele em que você se transforma no inimigo que você passou anos tentando derrubar. Lembrei de uma frase de Paul McCartney, cunhada na época da separação dos Beatles: “Se você chega aos 30 fazendo o que você fazia aos 18, tem algo muito errado com você.”

Curiosamente, a música da conversão de Rodolfo era “Vinte e poucos anos”, que ele próprio transformara em hit no século 21: “Eu sou capaz de ir e vou muito mais além/ do que você imagina (…) Eu não abro mão/ nem por você, nem por ninguém eu me desfaço dos meus planos/ Quero saber bem mais/ que os meus 20 e poucos anos (…) Eu sei, também tem gente me enganando/ mas que bobagem/ já é tempo de crescer”. Rodolfo queria crescer e, por sua liberdade, pagou o preço de deixar os Raimundos.

Eu nunca havia visto aquilo, nem no universo do rock, muito menos no ambiente religioso, e achava impressionante dos dois pontos-de-vista. Algum tempo depois, em 2003, fui ao Blen Blen, casa noturna de São Paulo, assistir a um show do Rodox numa noite de hardcore aberta pelas bandas White Frogs e Blind Pigs. Seria a estreia de Canisso, baixista original dos Raimundos, no Rodox. Depois de três horas de pacumpacumpa nos tímpanos e pogo na platéia, Rodolfo e seus cinco companheiros subiram ao palco, diante de um lago de cabelos espetados e cavalheiros bêbados loucos para se socar mutuamente. O som era alto, um tanto ininteligível e o clima era, digamos, hormonal. Uma briga estourou logo entre as primeiras músicas. Rodolfo interrompe o show e diz “Pô galera, pra que brigar? Vocês não estão prestando atenção na mensagem das letras?”. Como assim, “mensagem”? Virei para a minha linda esposa e comentamos, um para o outro: “Acho que esse negócio não vai dar certo!” e nos afastamos para o hall da casa, de onde contamos três ou quatro punks arrastados inconscientes.

Nos camarins, recebi um abraço fraternal de Rodolfo, como se estivéssemos em pé num cruzamento muito especial entre a estrada do rock brasileiro dos anos 90 e a da nossa própria peregrinação espiritual. Não imaginava que seria a última vez que veria Rodolfo pessoalmente. Pelos meses seguintes, pelos anos seguintes, ele foi adotando cada vez mais o linguajar evangélico, os jargões bíblicos, suas letras foram se tornando cada vez mais intransponíveis, os shows passaram a ter “cunho evangelístico”, até o ponto que o próprio Rodolfo interrompeu o Rodox, para dedicar-se totalmente ao gueto evangélico. Como missionário da igreja neopentecostal Bola de Neve, lançou discos falando de Deus em eventos religiosos para o público evangélico com um pequeno alcance. Ainda assim, amealhou um respeito enorme, dentro e fora do segmento.

Há um ou dois anos, eu estava preso em um engarrafamento carioca com André Forastieri e Carlos Eduardo Miranda, ambos parte integrante da história de Rodolfo, muito mais do que eu, inclusive. Sem mais o que fazer, começamos o tradicional jogo recreativo entre jornalistas “Batalha de Teorias Polêmicas”. Antes que eu lançasse a minha já clássica carta “Os Engenheiros do Hawaii são bem melhores que a Legião Urbana”, André lançou uma brilhante: “Rodolfo Abrantes é o melhor letrista da história do rock brasileiro”. O jogo estava desestabilizado, porque é uma carta que faz todo sentido. Lembrei de coisas da época dos Raimundos como “Eu quero é ver o oco” (“Meu ódio por automotores começou cedo/ Depois que eu tranquei os dedo na porta de um opalão/ Meu pai de dentro se ria que se mijava/ Achou que o filho festejava era dia de Cosme e Damião/ Depois do dedo, foi o braço, a perna as costa/ Tu duvida, bate aposta/ Pois muitos vão lhe testemunhar/ Tanta fratura que deixou a doutora louca/ É pino até no céu da boca/ Tu cansa só de tentar contar”) e de coisas do início de sua carreira solo como “Tira as crianças da sala” (“Eu podia até fazer uma cara de mauzão de arma na mão/ Idolatrar ladrão, pois isso vende/ Mas preferi ser original, um cidadão cristão/ Liberto da prisão/ e só cantar pra quem me entende”) e não consegui discordar. Mais tarde, voltei ao assunto com André e ele me disse algo que nunca mais deixou de reverberar na minha cabeça: “Eu tenho certeza que o Rodolfo tem muita coisa a dizer ainda hoje, talvez até mais, mas eu ouço as músicas dele e não entendo nada, e do que entendo não me interessa”. E concluiu, tão carinhoso quanto já o vi ser: “Eu sinto falta do Rodolfo”.

Eu também. Não enxerguei o quão farto o próprio Rodolfo estava de todo aparato em torno de si e da sua música, a ponto de optar, conscientemente ou não, pela irrelevância. Ou, quem sabe, ele também tenha escolhido seus limites, em nome de sua sanidade mental, como fizeram Roberto Carlos e Claude Monet. Ou talvez o tempo sob os ensinos da igreja lhe tenha feito dividir o mundo entre o que é secular e o que é religioso, o que seria uma pena. Ou talvez seu destino seja ser o Cat Stevens brasileiro, se você por acaso acredita em predestinação.

Saudade de você, Rodolfo, o maior letrista da história do rock brasileiro.


5 comentários:

  1. Apesar de não concordar inteiramente, é um belo texto... Mto sincero, mto esclarecedor

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  2. Apesar de não concordar inteiramente, é um belo texto... Mto sincero, mto esclarecedor

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  3. Como Assim Eng do Hawaii e melhor q Legiao??!! .-. Zoas kkk brincadeira ^^, opiniao e opiniao. Rodolfo faz muita falta T-T...

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  4. Como assim Eng do Hawaii e melhor q Legiao?!?!! .-. Zoas kkk brincadeira ^^, opiniao e opiniao. Mas enfim, o Rodolfo faz muita falta T-T.

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  5. Chorão também era um grande letrista, onde está hj? Rodolfo está bem melhor vc não acha?

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