Por Fernando Canto
Não é de hoje que vejo - e ouço – algumas associações de sincretismo entre o catolicismo e os ritos de origem africanos no Amapá como o Candomblé e o Tambor de Mina.
Nunes Pereira, uma das raras referências etnográficas do folclore amapaense, disse em seu livro “O Sahiré e o Marabaixo” (Fundação Joaquim Nabuco, Recife, 1989, pág. 101/115), que quando esteve no Laguinho e no Curiaú em 1949, observou que os tambores utilizados não exerciam claramente sobre os negros o poder transfigurador que os instrumentos de percussão têm na África ou do tipo usado nos terreiros Mina-Gêge de São Luís do Maranhão. Mesmo assim registrou os mais estranhos e emocionantes movimentos de dançarinos no Marabaixo.
Observou que (aos negros) “Nem lhes faltaram, nas máscaras luzidias de suor, o fulgor das pupilas e nos ritus dos lábios carnudos, a expressão dramática, que a posse do Guia, Santo ou Vodum, lhe transmite, e a expressão sensual, que nasce dos sentidos, açulados pelas libações e pelos contactos dos corpos em festa”... Mais adiante ele viu “saltos elásticos de alguns jovens, tais os dos bailarinos acrobatas, ou negaças fulminantes de capoeiras” que lhe reafirmavam um justo conceito, não de antropólogo, mas “de um viajante fascinado”.
Nunes Pereira ficou mesmo encantado com a dança dos negros e mestiços que aos poucos se avolumava no salão sob o comando do Mestre Julião Ramos. E informa que se “nos lembramos das atitudes místicas dos Voduns Mina-Gêge, erguendo os braços para o alto ou baixando-os para abrir mãos que se diriam afagar a terra, também nos lembramos dos passos do frevo pernambucano e das marchinhas do carnaval carioca”. Sua descrição da dança arremata que “Mestre Julião, de súbito, como se fosse envolvido pela fascinação daquele ritmo e daquelas atitudes, entrou a substituir um dos tocadores das ‘caixas’, arrebatando-lhe o instrumento. E, então, pela expressão de sua voz e pela segurança de seus toques, a dança atingiu o seu Pathos. E nela fomos envolvidos também”.
Dizendo isso, suponho que ele tenha mergulhado na “mucura”, a bebida alcoólica muito utilizada no Marabaixo, pois nenhum antropólogo é de ferro.
Ele ainda tentou atrair as negras velhas para conversas sobre terreiros, sobre Mães de Santo e Vodus, mas elas se esquivaram discretamente, entretanto sem poder negar que tudo isso lhes era familiar.
Certa vez eu presenciei uma incorporação sob os tambores do Marabaixo, porém imediatamente retiraram o “cavalo” (uma mulher) do recinto, não dando chance para perguntas.
Sobre esse assunto fui informado de outro caso, provocado por uma bebida possivelmente alucinógena preparada com cachaça e a casca macerada do caimbé branco, árvore abundante no cerrado das cercanias de Macapá.
No Haiti, sincreticamente São Tiago é associado a Ogum, o deus daomeano, com seu ar feroz, barba hirsuta e espada erguida. Em Cuba Ogum se equipara a São Pedro por levar em suas mãos as chaves do céu que são de ferro e a Santiago dos castelhanos, que, a cavalo, os ajudava na guerra matando mouros. No Brasil durante as cerimônias, os “adosu” por eles possuídos assumem uma expressão feroz e durante as danças empunham uma espada e executam a mímica da guerra e dos combates. Segundo Pierre Verger, a assistência grita, saudando: “Ogum ye”. Seus adeptos, muito numerosos, usam colares de cores azuis-escuras e braceletes de ferro. Na Bahia ele é assimilado a Santo Antônio e no Rio de Janeiro a São Jorge, que é outra personagem, ou figura da Festa de São Tiago de Mazagão Velho
Não é de hoje, repito, que essas coisas estão ligadas ao Marabaixo. Mesmo que se diga que seus principais ritos sejam de origem católica, a ancestralidade comanda o inconsciente coletivo. E o toque do tambor é muito poderoso. Inderê, Olô!
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