Fernando Canto
Chove em Macapá neste amanhecer de pétalas caídas nos jardins. Ondas verticais fustigam a pobreza das ruas, alagam o oco das pedras e atiçam o furor do céu, onde deuses cavalgam atônitos em busca das últimas estrelas que o firmamento esconde nesta época de nimbos. Uma dádiva esta chuva. É uma faca que golpeia o rastro dos caracóis e que retarda o voo das aves migratórias. Uma chuva é uma caba colossal dona de seu próprio voo que procura sobre a terra o segredo do veneno perdido na face espelhada das lamas matinais Uma chuva é um dom de Deus na relativa necessidade de quem a almeja. E assim eu te quero, chuva. Hoje mais do que nunca, porque és elemento da minha paisagem cotidiana, cenário da transformação do meu amor e indubitável perfume que cai suavemente sobre nós, sobre mim e ela, a mulher da minha vida.
Mulher que chove aos cântaros quando envidraça a escuridão dos teus sentidos, mulher que arde - absolutamente chama - sem o consumir do fogo. E chama a oceânica vontade do teu ser plural no sexo espumoso que especula degredos, inda que guardando segredos indizíveis na semente do tucumã, fruta ancestral. Mítica mulher que habita a cavidade dos sonhos enredados e abre as portas para o resoluto amor. Inexorável és como as calvas cúpulas da serra do Tumucumaque, a cobra adormecida, a morada dos alados seres que nunca estilhaçaram o gelo inexistente no teu dorso. Reserva-te ao direito de seres como Mitaraka, ó mulher, a montanha em forma de gente, observada pelos invasores de tua curta solidão, que chegam com o vento em alucinantes tropéis. Ora podes ser um arquipélago. Uma teia abissal de ilhas perdidas no oceano, ilhas que bailam e que dançam sob a música dramática dos dias da civilização. Ora podes ser também a mãe orgulhosa do fulgor das vozes e o relâmpago capaz dessa esperança. Talvez até no sol que invade a tua garganta com sua luz vertiginosa das manhãs cênicas do Bailique tu podes transformar-te, ó mulher.

Agora me despeço. Eu vivo a luz e a sombra da mulher que esbraveja o verbo e absorve a vida. Eu observo a mão que trata a argila do manancial diário das notícias da família, eu voo vaga-lume perto deste refletor iluminante, lâmina certeira, mulher dadivosa de chuva, enfeitada de estrelas e de andaimes, amante inconclusa da minha vontade.

*Do meu livro “Adoradores do Sol”. Scortecci, S. Paulo, 2010.
Ah... Me envaideço... fico prosa... fico toda besta :)
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