Crônica de Ronaldo Rodrigues
Ah, se eu tivesse o poder de matar sem levantar suspeita. Sem ter que apertar um gatilho. Sem precisar atirar uma faca. Sem ter que ver sangue jorrando. Sem usar as mãos. Só o pensamento.
Mataria esse motoqueiro que acaba de passar fazendo um barulho que me impede de ouvir o diálogo que desvenda todo o mistério do filme que passa na televisão neste momento.
O barulho do motor da moto é tão alto que mesmo pegando imediatamente o controle remoto e aumentando o volume ao máximo não consigo ouvir o que o brilhante historiador, personagem principal do filme, diz à mocinha apaixonada, que ouve com toda atenção essa verdadeira revelação sobre a cultura universal.
Ah, se eu tivesse o poder de matar à distância, mataria esse vizinho ensandecido, que ouve música da pior qualidade, no mais alto volume que pode alcançar seu supermordernérrimo-pra-caralho-ao-extremo aparelho de som.
Pronto. Desisto de assistir ao filme. Não é um filme de ação e seu roteiro se sustenta no diálogo. E eu não posso ouvir o que a jovem mocinha diz ao experiente historiador, que tem resposta pra tudo, porque um carro passa em altíssima velocidade, fazendo chiar seus oitenta pneus e batendo em cheio nas paredes descascadas dos meus tímpanos.
Ah, se eu tivesse o poder de matar sem deixar pistas, rastos e vestígios. E revestido de todos os álibis, perdoado por todas as leis, absolvido por todos os tribunais, inclusive o da minha consciência. Eu exerceria esse poder agora mesmo, e antes de agora, e depois de agora. Até que não restasse sequer um ser humano ou coisa ou fenômeno da natureza que pudesse interromper esse meu poder, depois de um dia inteiro de renúncia e frustração e solidão e mediocridade e medo, esse mínimo e mísero poder de assistir a um filme.
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