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sexta-feira, setembro 07, 2012

Kumarumã: a aldeia que ensina a viver

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Percorrendo o rio Uaçá, segue-se o curso do rio Curipi em uma viagem onde os mitos brincam na realidade. Na viagem de voadeira, as inúmeras histórias dos jacarés da região não me deixaram sentir nas mãos a água jogada pela velocidade do motor ou dar uma esticada colocando as pernas para fora do barco, carregado de combustível e mantimentos. 

- Não precisa ter medo, eles só ficam estirados na beira do rio a partir de setembro, me dizia seu Genésio.

Então lembrei que agosto acabava em três dias e, com a loucura que está a natureza, podia ser que os jacarés antecipassem o calendário. Por via das dúvidas me encolhi e contorci o corpo quando um bicho cascudo nos espiou e deu um mergulho com a proximidade da embarcação. Pronto, agora ele vem por baixo e vira o barco engolindo a todos, pensei.

Nada disso aconteceu e a viagem seguiu na companhia dos peixes, garças, gaviões e outros bichos, e os cinco índios, que se comunicavam entre si em patuá. Eles pescam aos montes com as canoas encostadas nas margens do rio. É comum famílias inteiras, às vezes só o homem e outras só as crianças se encarregarem do almoço e da janta.  

- Tá longe, seu Genésio?

- Não, é logo ali, dobrando aquela mata, quando passar o igarapé.

Me respondeu, mas em seguida comentou com  sinceridade:

- Índio quando diz que é perto é porque é longe, dez minutos pra gente é uma hora pra vocês.  

Assim, chegamos no meio da viagem, o Encruzo, onde os índios pagam suas penas trabalhando na natureza, em uma prisão ao ar livre. Onze da manhã e as mulheres das duas únicas famílias que moram no local já assavam peixe na brasa feita no chão. Em cima de uma grelha ardente, um jabuti com o casco virado pra cima, que ainda esperneava.

- Não dava pra matar antes?

- Não sei, aprendi que é assim que se cozinha jabuti. Respondeu a índia.

Seu Genésio me explicou que hoje os índios não vêm com muita frequência pro castigo no Encruzo, mas quando vinham, não tinha fuga.

- Fugir pra onde? De quê? Quando fazemos alguma coisa errada, como beber muito, brigar ou mexer nas coisas dos outros, é castigado na aldeia, o cacique diz a pena. Não tem índio na penitenciária, nem assassinato por aqui. Índio só morre quando tá na hora, ou de malária.

Uma cena me fez voltar no tempo: duas crianças riam improvisando uma gangorra com uma tábua velha em cima de um esteio. Nessa época, cheia de novidades eletrônicas, não imaginei ver novamente crianças se divertindo com algumas das minhas brincadeiras da infância pobre. Nossos companheiros, na falta de telefone, passaram um rádio do Encruzo para Kumarumã avisando da nossa chegada.

Depois de cinco horas de viagem fomos recebidos em Kumarumã, onde vivem os Galibi-Marworno, pelo cacique Oberto e outros indígenas. Pra confirmar a lenda, procurei cachorros, dizem que se não tem, é porque os jacarés estão por perto. É uma aldeia com poucos cachorros. Nas faixas, mensagens de recepção e pedindo cuidados com a limpeza da aldeia em português e patuá. Uma curumim de cerca de 7 anos me fez rir muito com a cara que fez quando viu seu rosto fotografado na tela da câmera.  

O almoço estava sendo preparado em panelões sob uma grande fogueira cavada no chão de terra. Cardápio: piranha, pirarucu, pescada e jacaré cozidos. Com vergonha, não tiramos da mala os enlatados e talheres que levamos e comemos com vontade.      

Estava um rebuliço na aldeia por causa do grande evento que reuniria todas as etnias, a Assembléia dos Povos Indígenas de Oiapoque, que eu, o cinegrafista Marcelo Lima e a fotógrafa Márcia do Carmo, fomos acompanhar. Barcos chegavam carregados de índios de muitas aldeias e eram recebidos ao modo deles, sem gritos nem fogos, mas com um sorriso sincero que estampava a felicidade por rever alguém querido.

Um passeio no fim da tarde me deixou encantada pela maneira como tratam as dificuldades e pela relação que têm com a modernidade. Os telefones públicos estavam sem funcionar e voltaram a tocar naquela tarde. Celular tem, mas só serve pra escutar música. No lanche, no lugar de salgados ou biscoitos, o bom é comer pão, cará ou macaxeira com café na porta da casa, enquanto faz-se farinha e tucupi, não esquecendo de separar a crueira para o mingau. Pra embelezar, pinturas, adereços de dente de macaco, sementes e miçangas. Televisão tem, mas ninguém enlouquece quando o gerador de energia para de funcionar e a escuridão chega.

Outras cenas que ficaram gravadas na câmera e pra sempre dentro de mim. O velho índio que ensinava com paciência ao neto a arte de tecer paneiros; outro que tentava tocar nas cordas da guitarra elétrica as músicas indígenas, e os índios afeminados que não sofriam discriminação. Talvez a maioria deles ainda não saibam, mas é muito bom ser criança naquela aldeia. Duas adolescentes de 15 anos brincavam de bole-bole, outras de baralho, umas bem menores competiam o cabo-de-guerra, as mal saídas das fraldas se lambuzavam na terra sem medo de micróbios.

Quando a noite chegou, futebol na praça pra espantar a morrinha, mosquitos e carapanãs. Fomos abordados por crianças em patuá que faziam sinal dizendo que queriam fazer fotos. Em Kumarumã os curumins são alfabetizados na língua materna até a quarta série, por isso nunca esquecem o idioma. Na hora da janta, mais peixe e fomos nos agasalhar embaixo dos mosquiteiros. No outro dia os índios haviam se multiplicado, dezenas chegaram na madrugada, muitas roupas coloridas, penas  e boas-vindas em vários dialetos. É um encontro para discutir políticas indígenas, mas também para confraternizar e rever amigos e parentes distantes.

Antes do fim da viagem de volta, tive  a certeza que eu tinha que estar ali, pra resgatar lembranças perdidas em meio aos problemas do cotidiano. Aprendi que 10 minutos devem ser aproveitados como se fosse 60, sem pressa. Compreendi que a simplicidade, humildade e sinceridade, se não nascem com a gente, podem ser aprendidas com pessoas de mundos distante. Vi que a vida tem que ser vivida sem rancores, raiva ou mal humor, reclamar, só se for resolver o problema, se não, alimenta nossa alma de coisas estranhas e ruins. Conheci outra forma de prisão, ao ar livre, onde o que dói não são as algemas, mas a ausência de amigos e parentes. Tecnologia é muito bom, mas pode ser substituída por coisas simples. E finalmente, que o Turé, a dança do agradecimento e de encontro com os antepassados, deve ser dançado com pessoas queridas, sempre que sentirmos vontade de estar com elas e tivermos saudade do que se foi.

Mariléia Maciel - Jornalista.

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