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terça-feira, setembro 17, 2013

A rebelião dos objetos da casa (conto de Ronaldo Rodrigues)

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- A televisão liderou a rebelião!

Esta foi a declaração do abajur, que jurou estar ligado àquela hora. A descarada da televisão (palavras dele, o que me levou a pensar que havia alguma animosidade antiga entre os dois) usou os serviços do apresentador do telejornal para divulgar a nota em que se anunciava a rebelião dos objetos da casa.

A televisão revidou com fúria e muita ênfase à acusação do abajur (o que reforçou minha ideia anterior de que havia mesmo hostilidade entre os dois. Será que eles eram personagens de uma história obscura envolvendo amor e ódio? Mas deixemos de especulações e retornemos à investigação).

Eu dizia que a televisão rechaçou a acusação do abajur e o acusou de alcaguete. O abajur, ofendidíssimo, piscou três vezes e quase apagou, mas prosseguiu seu depoimento, sempre atacando a televisão, que saiu do ar três vezes (o que me fez pensar que a coisa era séria mesmo, pois mesmo travando um embate, televisão e abajur mostravam fina sintonia, num sincronismo fantástico: os dois tiveram o mesmo número de reações. A televisão saiu do ar três vezes e por três vezes o abajur piscou).

O abajur jurou que jamais abjuraria sua fé. A liderança da TV era notória. Ela mantinha os outros objetos sob total domínio. Por isso, o abajur insistia em sua tese de que a TV liderara o motim (o que me chamou a atenção novamente. Ah, sei que esse papo tá ficando chato, mas sou um investigador que acha que esses lances psicológicos ajudam a elucidar os crimes. É preciso estar atento ao fato concreto, real, mas deve-se deixar a porta aberta para as deduções mais delirantes que possam aparecer. Voltando: o que me chamou a atenção novamente foi o fato de o abajur tratar a televisão por TV. Isso denotava uma certa intimidade, vocês não acham? Vou pegar os depoimentos dos outros objetos envolvidos para ver se eles tratavam a televisão por TV. Caso não tratassem, o abajur teria claramente uma intimidade maior que os outros com a televisão.

A televisão chamou em sua defesa o liquidificador, que foi logo triturando o abajur, falando poucas e boas (detectei um terceiro elemento no caso que imaginava entre televisão e abajur. O liquidificador parecia se deliciar ao ver televisão e abajur se confrontando).

A discussão pegou fogo mesmo quando entrou em cena o fogão, apoiado pelo micro-ondas e por uma gravata, que não estava envolvida na rebelião, mas queria dar uma força ao amigo micro-ondas, que sempre lhe esquentava no inverno. Ela foi aceita pelos dois litigantes e a sessão de depoimentos continuou.

O fogão estava muito acalorado e fez uma veemente defesa da televisão. O que atrapalhou foi que o fogão fez os mesmos comentários em relação ao abajur, exaltando suas virtudes. Fiquei confuso por certo tempo e pedi que os objetos tentassem ser mais objetivos. Mas a opinião do micro-ondas só fez requentar a opinião do fogão, puxando a brasa pra sardinha tanto da televisão quanto do abajur. Fiquei mais confuso ainda e perguntei à televisão e ao abajur se eles gostariam mesmo de levar aquela questão adiante. Eu abriria mão da investigação e, consequentemente, daquela sessão de depoimentos que já estava ficando cansativa e confusa demais. Eu retiraria a acusação do abajur à televisão, caso todos se responsabilizassem pela normalidade da casa e zelassem para que os motins, que porventura chegassem a ser tramados, não fossem executados. Os objetos aceitaram, se acalmaram e voltaram aos seus lugares.

Fui descansar daquela noite extenuante e fiquei pensando na ligação que pode haver entre os objetos. Eu não deveria me preocupar. Se rolasse algo entre eles, problema deles, solução deles. O sofá poderia flertar com o tapete. A mesa poderia paquerar os talheres. A pia poderia ter o maior tesão pela geladeira. Que esta não fosse fria e deixasse a pia toda molhadinha. E se a televisão tivesse mesmo um caso com o abajur, e daí? Que eles se beijassem na boca e fossem felizes.

Quando pensei que estava tudo em paz, já me preparando para dormir, o aparelho de som voltou a tocar no assunto dizendo que o abajur não tinha nada que acusar a TV (epa! Então o aparelho de som também tratava a televisão por TV! Hummm... Elementar!). Aí começou nova rebelião.

Ronaldo Rodrigues

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