Da esquina da rua em que mora, as fofocas chegam aos ouvidos de d. Zulmira: ela bate no seu Ernesto, vocês não sabem, não? Então não escutam os gritos do coitado?
D. Zulmira, louca da vida, sai de casa, disposta a quebrar a cara das fofoqueiras de plantão. A dois passos, controla-se, prossegue altiva, passando ao largo do disse-disse.
Acontece que d. Zulmira bate mesmo. Por qualquer motivo, promove grosso espancamento, tortura fria, requintes de sadismo. Seu Ernesto chega tarde: tamancada certeira na cabeça do infeliz. Seu Ernesto chega cedo: cotovelada nas magras costelas. Seu Ernesto fica em casa: panelada no lombo, dedo fura-bolo no olho.
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No Dia de Todos os Santos, seu Ernesto sai para comprar cigarro e se torna protagonista da clássica história de abandono do lar.
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Depois de esperar dois anos, d. Zulmira arranja novo companheiro, homem de ombros largos e sorriso aberto. As vizinhas deduzem que, pelos ombros largos, esse não vai apanhar. Pelo sorriso constantemente aberto, concluem que também não vai bater.
Quando todos se retiram, ele reclama de d. Zulmira, acusando-a de não ter servido com boa vontade. Ela jura que não, ajoelha-se, chora. Tudo em vão: lá vem bordoada, pontapé, palavrões. Ela segura os óculos, cambaleando. Ele, sem parar de sorrir, batendo, batendo, batendo...
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Na Sexta-Feira da Paixão, d. Zulmira sai de casa para comprar cigarro. O companheiro fica na cama, estirado. Um cutelo no crânio, uma chave de fenda no ombro largo. Na boca, o indefectível sorriso aberto, um punhal cravado no meio.
Ronaldo Rodrigues





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