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terça-feira, maio 07, 2013

Lição de vida. E de morte. (crônica de Ronaldo Rodrigues)

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A mulher acorda com a tosse insistente do filho e fuzila o marido com olhar e palavras:
– Tu não estás ouvindo o menino tossir?
O marido, sem largar a latinha de cerveja:
– Eu já mandei ele parar, mas tu achas que ele parou? É a tal da modernidade! Filho não obedece pai! Esse mundo tá perdido, minha filha!
– Tu tens que fazer alguma coisa! Deixa, deixa... Já vi que quem tem que resolver sou eu. Vou pegar o xarope.
– Aproveita e pega outra latinha, amor.
– Claro, bem. O que é que tu me pedes chorando que eu não te dou uma porrada?
E o marido, na maior tranquilidade:
– Caaaalma... Sem violência... Traz uma bem geladinha, tesouro!
E lá vai a mulher, resmungando. O filho tosse outra vez e o marido aumenta o som da televisão, não sem antes dar uma palavrinha de carinho ao filho:
– Olha o barulho aí, moleque! Não tás vendo que eu tô vendo televisão? Esses jornais da madruga são os que eu mais gosto. Tem violência que só vai chegar ao conhecimento do povo amanhã de manhã.
A mulher volta com o xarope e dá para o menino. O marido sente falta de alguma coisa:
– Cadê a cerveja, mulher?
– Quer cerveja vai pegar!
O marido se levanta do sofá e vai reclamando até a cozinha:
– Será que eu tenho que fazer tudo nesta casa? Quem tem que beber sou eu! Quem tem que fumar sou eu! Quem tem que ver televisão de cueca no sofá sou eu! Assim é demais! Estou ficando exausto! Ainda bem que ela falou com jeito, senão...

Depois de instalado no sofá com sua latinha na mão, o marido dá vazão ao seu lado paterno e tenta levar um papo com o filho:
– O negócio é o seguinte, moleque. Posso te chamar de moleque? É como chamo meus bróders. Que cara é essa? Deixa de frescura que ser chamado de moleque não é ofensa. É o meu jeito de ser carinhoso.
É aí que o filho o surpreende:
 – Carái, véi! Deixa de enrolação! Dá logo o papo!
O marido cai do sofá e a esposa salta da cama, onde já tinha se aninhado:
– Que é isso, menino? Isso é jeito de falar com seu pai? Pai é pai, não importa se ele é preguiçoso, covarde, medroso... Ele é pai. Fale direito com ele!
O marido se assusta ainda mais vendo a esposa sair em sua defesa. Ah, não! – pensa o marido. – Dois sustos desses na mesma noite!
E a mulher continua em campo:
– Pode ser canalha, pode ser sacana, pode ser imprestável, pode ser desonesto, mas se é pai é pai! E tem mais!
– Pode parar, mulher. Ele já entendeu. Obrigado!
O marido até esquece o que ia falar com o garoto. Mas, puxando pelos fios que sobram daquilo que um dia se chamou memória, ele lembra de tudo. É como se o filme da sua vida passasse por sua cabeça...
– Epa! Pode parar por aí, seu narrador! Esse negócio de ver o filme da própria vida é quando o cara vai morrer. Que papo é esse? – É o marido se intrometendo na minha história, ainda que a história seja dele.

Tudo bem. Prosseguindo:
O marido veste a fantasia de pai e fala sério com o filho:
– Filho, tu já tens quase seis anos, já és um homem. Precisas saber das coisas da vida, do mundo. E eu sou teu pai, a pessoa mais indicada para te explicar isso. Te prepara pro que vais ouvir.
O pai molha o bico e declara filosoficamente:
– Saiba, ó filho meu, que neste mundo e em tua vida encontrarás muitas pessoas. Umas boas, outras ruins. Mas é preciso respeitar todo mundo, sem distinção. Temos que respeitar tudo quanto é filho da puta que aparecer. Não se esqueça disso. É a mensagem que meu pai me transmitiu, que foi transmitida pelo teu avô e que tu não passarás para teu filho porque não dará tempo. O mundo, do jeito que vai, será destruído ainda nesta década. Fui claro?
– Foi sim, mas e daí? O que é que eu tenho a ver com isso? Para o mundo e para as pessoas eu mando um kiss!
– Kiss! Já sabe falar inglês, filho? Tá mandando um beijo pro mundo e pras pessoas?
– Do not! Eu tô mandando um kisse-fôda! Fuck-se todo mundo! E eu também!
– Ah! Agora fez sentido!
A mulher intervém:
– Eu tô achando essa conversa meio estranha. Tu não estás ensinando coisas boas pro nosso filho.
– Cala a boca, mulher! Eu tô dando o papo reto pro moleque! Tô falando de amizade, consideração, generosidade... Esse monte de besteira que os pais devem dizer aos filhos. Em resumo: tô falando de respeito ao próximo. RES-PEI-TO! Coisa que tu não entendes. Não te mete e vai esquentar a janta que bateu uma larica daquelas.
– Eu vou, mas esse menino vai ser pior do que tu.
– E eu esqueci de dizer uma coisa, filho. De qualquer maneira, mesmo com toda a escrotice que eu falei dos seres humanos, eles têm salvação. Eles te atropelam, te maltratam, te deixam na miséria, fazem tudo quanto é possível pra te deixar numa pior. Só que eles também têm coração, sentimento, essas coisas... E lá no fundo, no fundo mesmo, o que eles querem é que tu te fôdas!
– Obrigado pelas palavras, pai. E me dá um gole dessa cerveja que a tosse já passou!

Ronaldo Rodrigues

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